domingo, 9 de junho de 2013

Os Ombros Suportam o Mundo

Não acho adequado o termo "cicatrizes" para as experiências resolvidas da vida. Cicatrizes são marcas visíveis que nos fazem lembrar dos momentos tristes em que as feridas ainda sangravam, mesmo depois de fechadas. Até os bons momentos ligados a elas são lembrados com tristeza, portanto, não tão bons para o presente.

O aprendizado é duro, mas para se tornar útil é preciso que as experiências se agreguem positivamente à nossa essência, que aterrizem suavemente em nossa alma. E só depois que isto acontecer virá o perdão sincero e sumirão as nossas culpas. Mas para chegar lá é necessário muito trabalho interno.

E quando chegarmos, nossos "sims" e "nãos" também serão suaves, respaldados por nossas certezas não teimosas. O contraditório não terá mais nenhum poder de convencimento porque entenderemos o direito que cada um tem de não ter as mesmas certezas que as nossas e nem esperaremos que as tenham um dia. Como escreveu Carlos Drummond de Andrade, "Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho. ímpar."


Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

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