sábado, 17 de novembro de 2012

Eu e o tempo

"Olhamos para o passado com saudade, para o presente com desprezo e para o futuro com esperança. (...) Para falarmos bem ou mal do tempo é necessário que ele tenha passado e para que o desejemos é preciso considerá-lo longe. A vaidade faz-nos olhar para o tempo que passou com indiferença porque sobre ele já não há ação; faz-nos ver o presente com desprezo porque nunca satisfazemos essa vaidade; e faz-nos contemplar o futuro com esperança, pois, ele se baseia no que há-de vir. E assim, estimamos o que já não temos, desprezamos o que possuímos e só cuidamos do que não sabemos se teremos." (Matias Aires*)

Quando meu pai estava com 83 anos, sem poder mais sair de casa sozinho por problemas de oxigenação cerebral, várias foram as ocasiões em que, ao visitá-lo em sua casa, o pegava sentado e pensativo, olhando para um ponto qualquer da parede. Eu o beijava e sentava para bater um papo sobre futebol, política e essas coisas sem compromisso para distraí-lo. Quando dávamos uma pausa na conversa ele retomava seu olhar perdido e às vezes dizia: "É... a vida é assim."

Nessa frase suspirada de meu pai caberiam muitas suposições e inferências, mas o estranho é que eu nunca perguntei diretamente pra ele o significado dessa pequena, mas significativa expressão de desabafo. Não sei se por medo de me sentir culpado por alguma coisa; de ser obrigado a falar sobre coisas boas que não voltarão mais ou ruins que não foram esquecidas; sobre o presente aparentemente imutável ou sobre seu futuro sem expectativas de grandes mudanças. Não perguntei, mas sabia que certamente eram conclusões de difícil empatia, pois, 37 anos de vivência nos separavam. Eu estava ali com ele, mas minha cabeça fervilhava pensando no tanto de coisas que eu teria para fazer depois que fosse embora. Como no texto de Matias Aires, entre os meus afazeres havia muita coisa para cuidar que não sabia se um dia teria. É pai... hoje estou quase entendendo... a vida é assim. E é assim mesmo!

Na verdade eu ainda cuido do que não sei se algum dia terei, mas muitas coisas já foram riscadas da lista, sejam elas as que já consegui ou as que decidi não mais (re)conquistar. Não por ter desistido de viver, mas por ter me tornado mais pragmático. Tenho que me bastar. Posso até recorrer à saudade de vez em quando para parar e respirar (ou suspirar) um pouco, mas sem me virar para trás. Como escreveu o poeta Mario Quintana, "O tempo não pára, só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo." E é do mesmo Quintana o belo poema com o qual eu termino este post, homenageando - e de alguma forma compreendendo - o meu saudoso pai.

ESPELHO
Por acaso, surpreendo-me no espelho:
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu?
(...) Parece meu velho pai - que já morreu!
(...) Nosso olhar duro interroga:
"O que fizeste de mim?"
Eu pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste... 
(Mario Quintana)



*Matias Aires Ramos da Silva de Eça (São Paulo, 27 de março de 1705 — 1763) foi um filósofo e escritor de nacionalidade portuguesa nascido no Brasil colônia. Em 1716 seus pais se mudaram para Portugal, e Matias ingressou no Colégio de Santo Antão. Em 1722, estudou na Faculdade de Direito de Coimbra, onde recebeu o grau de licenciado em Artes, graduando-se mais tarde na cidade de Baiona, na Galícia. Escreveu obras em francês e latim e foi também tradutor de clássicos latinos. É considerado por muitos o maior nome da filosofia de língua portuguesa do seu tempo. Em Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, cuja primeira edição é de 1752, o autor tece suas reflexões a partir do trecho bíblico extraído do Eclesiastes: Vanitas vanitatum et omnia vanitas, ou seja, "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade".

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